500 mil vidas perdidas: Como o Brasil chegou à triste marca de meio milhão de mortes pela Covid-19
País totaliza 500.022 óbitos e 17.822.659 casos, segundo o consórcio de veículos de imprensa
19/06/2021 15h20
No momento em que a primeira vítima fatal da Covid-19 chegou à mesa de autópsia do médico patologista Paulo Saldiva, ele não poderia prever a dimensão da crise sanitária que aguardava o Brasil. "Quando fizemos essa autópsia em março de 2020, imaginei que quando fosse setembro, outubro, teria acabado tudo. E nós entramos numa noite em que o sol jamais raiou. É uma noite que não acaba", conta.
Hoje, pouco mais de um ano e três meses depois da pandemia ser decretada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o país ultrapassou a marca de meio milhão de óbitos pela doença, de acordo com dados do consórcio de veículos de imprensa, baseados no números das Secretarias Estaduais de Saúde. O total de infecções pelo coronavírus no Brasil é de 17.822.659.
Desde a primeira detecção do novo coronavírus, no fim de 2019, a Covid-19 causou quase 4 milhões de mortes ao redor do mundo e colocou o planeta em estado de emergência. Em todos os países onde chegou, o vírus carregou também uma série de desafios humanitários, políticos e econômicos - e no Brasil não foi diferente. Mas o que explica, então, o desempenho particularmente trágico do país na pandemia?
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"Não dá para pendurar no presidente todas as 500 mil mortes, mas uma parte, dá", diz Paulo Saldiva. "Tem um problema da heterogeneidade, nossa falta de disciplina como povo e o clima político do país, de ódio e divisão, também dificultaram o esforço. E aí com esse monte de latão de gasolina e barril de pólvora, vem um presidente com o fósforo aceso. Ele estimulou isso porque ele vive do conflito", avalia. "Não é uma questão de direita ou esquerda, é uma questão de ignorância. [...] O vírus está ótimo; e se uma variante for melhor do que a outra, ela vira 'chefe', passa a dominar. Enquanto o vírus evolui, o Brasil involui".
Segundo Deisy Ventura, que coordenou um estudo da Faculdade de Saúde Pública da USP sobre a ação do governo federal na crise da Covid-19, a propagação do vírus foi uma estratégia da gestão. "Havia, no início da pandemia, uma expectativa de que o número de óbitos seria bem mais baixo. O governo aceitou que esses óbitos aconteceriam, decidiu causar a morte dessas pessoas. Mas, eu imagino que não havia a avaliação de que o número seria tão grande", afirmou, em uma edição do programa Opinião do início de abril.
Publicado em janeiro de 2021 e realizado em parceria com a Conecta Direitos Humanos, o levantamento analisou mais de três mil normas federais emitidas desde o início da pandemia.
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"Nós temos acompanhado a resposta federal à pandemia e também as respostas estaduais desde março do ano passado. Nós nos demos conta de que não se tratava de erro do governo, não se tratava de incompetência. Muitas vezes as pessoas chegaram a referir loucura ou desatino do presidente da República quando, na verdade, nós constatamos uma atuação sistemática, coordenada de diversos órgãos do governo, no sentido de disseminar a Covid-19 no Brasil", explicou a pesquisadora.
Para analisar a gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) na pandemia, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal em 27 de abril. Estão em pauta na CPI o atraso na vacinação - até agora, apenas 11,4% da população do país foi imunizada com as duas doses -, a promoção de remédios ineficazes contra a doença por agentes do governo, a posição contrária a medidas restritivas e minimização da gravidade da pandemia.
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Para Saldiva, que trabalhou na epidemia de H1N1 e também atua em pesquisas sobre outras patologias, estar diante de uma doença sobre a qual não se sabe o suficiente não é uma experiência nova, mas o caso da Covid-19 foi, até hoje, o mais dramático e intenso. "Tenho muito mais dúvidas hoje do que eu tinha quando fiz a primeira autópsia. Impressionou pela agressividade do vírus, que era maior do que do H1N1 e pela distribuição em todos os órgãos", conta.
Embora a ciência tenha avançado a passos largos para auxiliar no combate à doença em pouco mais de um ano, inclusive com a produção de vacinas em tempo recorde, ainda há muito trabalho a ser feito, segundo Saldiva. "Hoje a gente não sabe quanto tempo vai durar a imunidade, tem gente com a infecção natural que está pegando de novo. Qual o tempo que essas vacinas vão dar? Nós vamos ter que tomar reforço sempre? Vamos ter que considerar as variantes dentro de um pacote? Fazer um coquetel de antígenos? [...] E essa tecnologia vai ser usada para quem precisa ou para quem pode pagar por ela? Ele vai ser uma commodity ou um bem comum?", questiona.
Trabalhando na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital das Clínicas, em São Paulo, que recebe pacientes já em estado grave, ele cita também o impacto da desigualdade social nos efeitos da doença: "Aqui a gente não tem muito negacionista, só tem sobrevivente; um monte de gente invisível que faz a cidade funcionar enquanto está tendo a pandemia".
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Apesar da situação dramática vivida no Brasil e no mundo, o médico avalia que há, sim, luz no fim do túnel: "A nível individual, tem muita gente que toma jeito na vida depois que está na UTI. Acho que a UTI já fez mais conversões do que igrejas". Ele relembra que outras situações de epidemia ao longo da história trouxeram os mesmos debates que vemos hoje: preconceito, divisão, conflito entre o bem estar coletivo e liberdades individuais.
Para ele, além de avanços científicos como o desenvolvimento de vacinas, o momento também exige um esforço global coletivo: "Esse é um desafio que vai além da ciência, vai para valores muito pertencentes à ética, aos princípios morais e direitos fundamentais de pessoas, que a gente não consegue controlar. [...] Eu diria que o estoque hoje de valores morais, de ética, de princípios e de compaixão está baixo".
Mas, assim como pacientes que decidem cuidar da saúde quando chegam à UTI "batendo na trave", nas palavras do médico, as lideranças globais também devem perceber a necessidade de um esforço conjunto para controlar a crise: "Quando se prejudica a educação, o meio ambiente, demora anos para você ver. Mas, na hora que tem gente morrendo, esse discurso vai perdendo força. A economia vai embora e o capital político, que é o que eles estão mais interessados, vai embora. Então vão ter que tomar jeito por necessidade de sobrevivência", completa.
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