O realismo dramático do mangá “Ashita no Joe”, que finalmente sairá no Brasil
Joe é um órfão pobre e sem lar, intempestivo, briguento e bom de luta. Ao ser preso, descobre na cadeia seu talento para o boxe
25/07/2022 12h05
Quando eu era criança, era raro achar mangás no Brasil. Mais difícil ainda era encontrar livros sobre quadrinhos, os quais eu devorava. Álvaro de Moya e Moacy Cirne (que não é meu parente), entre poucos outros, me apresentavam a obras de locais tão distantes que pareciam ser extraterrestres, e não apenas de outros países.
Uma obra específica me despertou muita curiosidade. Um mangá (como eu queria ler aqueles quadrinhos tão diferentes de Turma da Mônica, Disney e super-heróis) que saiu nos anos 60 e 70 e que foi popular a ponto de, que quando um personagem coadjuvante morreu, centenas de fãs terem organizado um velório nas ruas de Tóquio...
Poucos anos atrás fui ao Japão e fiz questão de ir atrás de um exemplar para minha coleção. Aqui, ao meu lado, está (infelizmente em japonês) o número 1 de “Ashita no Joe”, obra escrita por Ikki Kajiwara (pseudônimo de Asao Takamori) e ilustrada por Tetsuya Chiba. Em minha primeira coluna deste ano, até pedi ao Papai Noel que a série saísse aqui no Brasil...
Há poucas semanas, a editora NewPOP anunciou que publicará “Ashita no Joe” (não divulgaram como vão traduzir o nome) aqui no Brasil. Como leitor, fico muito feliz. É uma obra que marcou época (foi lançada originalmente entre 1968 e 73) por dois motivos: 1 – ser de alta qualidade (claro!); 2 – temática diferenciada e madura.
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Primeiro, uma breve sinopse: o Joe do título é um órfão pobre e sem lar, intempestivo, briguento e bom de luta. Ao ser preso, descobre na cadeia seu talento para o boxe. Ao sair de lá, aproveita sua força, resiliência e uma incomum capacidade de não desistir para iniciar uma carreira de pugilista.
Este enredo pode dar margem a todo tipo de história, é claro. O que pegou foi que Kajiwara e Chiba (com seu dinâmico traço) entregaram um personagem que destoava do universo dos mangás de então. Enquanto a grande maioria de seus concorrentes iam para o rumo do escapismo, com muito humor e fantasia (muito influenciados por “Astro Boy”, de Osamu Tezuka, publicado na década anterior), “Ashita no Joe” pisava no duro e quase insuportável chão da realidade de um Japão empobrecido após a Segunda Guerra Mundial.
Um ponto aqui: não tenho nada contra mangás (ou qualquer outra obra de arte) de escapismo. Há espaço para tudo! Estou apenas mostrando o caminho que estes autores tomaram.
O personagem-título Joe não tinha dinheiro, casa própria ou carro. Tomou muitas decisões erradas, influenciado mais pelo fígado que pelo cérebro. Mas, no fundo, tinha um bom coração, ainda que o fato de ter tomado tanta porrada na vida fizesse com que às vezes se afastasse um pouco de quem o queria bem.
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E aí? Se identificou um pouco com ele? Ou muito? De novo, nada contra um kryptoniano superpoderoso (adoro Superman), um guerreiro gaulês mais corajoso que a própria Coragem (adoro Asterix) ou robôs voadores (adoro Astro Boy). Mas, cheio de defeitos como sou, estou muito mais próximo do Joe.
Não se deve esperar de “Ashita no Joe” a trajetória composta apenas de vitórias avassaladoras – este jovem pugilista é falível demais par isto. Há drama, realidade, coração, erros e acertos. Acima de tudo, há entrega: alguém que vê uma chance na vida e tenta se agarrar a ela de todas as formas. Uma obra dessas, bem narrada, tem tudo para nocautear o leitor. Após décadas de espera: bem vindo, Joe.
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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