O novo programa social do governo, o Auxílio Brasil, deve iniciar o pagamento do benefício no dia 17 de novembro, na próxima quarta-feira. O projeto criado para substituir o Bolsa Família é uma tentativa de recuperar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Apesar do pagamento não ter começado, o projeto tem gerado debate entre especialistas e economistas, uma vez que fura o teto de gastos da União.
O site da TV Cultura conversou com o professor de economia da faculdade Cásper Líbero, Jefferson Mariano e com Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo e professora de finanças públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que explicaram os impactos do programa na economia brasileira.
O Bolsa Família foi criado em outubro de 2003, durante o governo do ex-presidente Lula (PT). O último pagamento foi efetuado no dia 29 de outubro e beneficiava cerca de 14 milhões de pessoas em estado de vulnerabilidade social. Após 18 anos de existência, o programa foi extinto.
Na última segunda-feira (8), o governo publicou no Diário Oficial da União (DOU) as regras para o funcionamento do Auxílio Brasil. No primeiro mês do pagamento, o benefício estará disponível para 14.6 milhões de brasileiros, todos beneficiários do Bolsa Família que não precisarão de recadastramento.
A expectativa do governo é de ampliar o número de contemplados em dezembro, quando deverá beneficiar 17 milhões de brasileiros com R$ 400.
O programa é destinado para famílias em extrema pobreza, que têm renda por pessoa de até R$ 100 mensais. Antes, o valor considerado era de R$ 89. Para famílias pobres, com renda por pessoa de R$ 100,01 e R$ 200, antes era R$ 178. O governo anunciou que o benefício médio será de R$ 217,18, e aumentará em 2022 para R$400 - ano da eleição presidencial.
Por qual motivo o programa gera divergências?
O debate em torno do Auxilio Brasil está sobre o financiamento. O governo decidiu bancar o programa por meio da liberação de verba da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Precatórios.
Os precatórios são dívidas da União reconhecidas pela Justiça com pessoas físicas e jurídicas. A dívida está em R$90 bilhões.
A PEC 23/21, do Poder Executivo, teve o texto-base aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados na madrugada da última quarta-feira (4), por um placar apertado: foram 312 a 144. Para aprovação de uma PEC, são necessários 308 votos favoráveis.
Na noite desta terça-feira (9), a Casa aprovou em segundo turno o texto-base. Com um placar um pouco mais folgado, a proposta recebeu 323 votos favoráveis e 172 deputados foram contra. O texto aprovado limita o pagamento dos precatórios a R$ 44,5 bilhões de reais em 2022.
Segundo o governo, para efetuar o pagamento de R$ 400, é necessário abrir espaço fiscal de R$ 91,6 bilhões para o próximo ano. O economista Jefferson Mariano discorda que os precatórios sejam o melhor caminho para bancar o benefício.
“Se o governo fizer uma reengenharia em termos dos recursos já disponíveis, e principalmente, no caso de alguns recursos que são gastos como as emendas parlamentares, o governo tem gastos em algumas áreas que poderiam ser realocadas para os programas sociais, têm espaço no âmbito das finanças públicas para que o valor seja um pouco maior do que os R$ 400”, afirma.
Ele ressalta que fazer o pagamento de um programa por meio de dívidas pode gerar descredibilidade para o governo. “Quando o governo tenta buscar financiamento, por meio da dívida, da emissão de papéis, acaba tendo que pagar prêmios. Isso significa que daqui pra frente o governo vai pagar prêmios cada vez mais elevados em função do descrédito da pandemia, que é um cenário parecido com o que aconteceu nos anos 80 e 90”, explica.
O mercado financeiro não reagiu de forma positiva após a aprovação da PEC. No dia da votação, o dólar fechou em alta de 0,29%, cotado a R$ 5,606. Enquanto a IBOVESPA registrou queda de 2,09%, aos 103.412,09 pontos.
Teto de Gastos
O que causa reação negativa do mercado sobre a PEC dos Precatórios e o Auxílio Brasil é o furo do teto de gastos. O teto de gastos foi uma legislação criada durante o governo Temer, em 2016. Segundo Jefferson, o Brasil passava por uma crise econômica na questão dos gastos públicos.
A legislação diz que o governo não pode realizar gastos superiores à referência de 2016. Por exemplo, em 2017, o valor não pôde ser maior que os gastos do ano anterior. Para 2021, o teto de gastos é de R$ 1,486 trilhão.
Apesar da legislação, os especialistas ouvidos pelo site da TV Cultura afirmam que o teto de gastos pode ser revisto e repensado de acordo com as necessidades da população.
“Eu não sou daquelas pessoas que entende que o teto deve ser mantido 100%. Supostamente, já foi alterado em 2019 para fazer a repartição dos recursos do mega leilão do pré-sal. O teto precisa ser revisto para incluir a fronteira das receitas e das despesas financeiras. Demonizar a ampliação do bolsa família a pretexto de que isso seria irresponsabilidade fiscal é desonesto. O teto não pode servir de empecilho, não pode servir de argumento para negar a segurança alimentar a milhões de brasileiros que precisam de proteção estatal”, argumenta Élida Graziane.
“O teto pode ser furado, pode ser em qualquer governo, de direita, de esquerda. Dependendo da circunstância, por exemplo, déficit fiscal, desde que tenha possibilidade de retomar a economia depois. O governo, em alguns momentos, pode gastar mais, desde que aquele gasto se caracterize como investimento produtivo, que possibilita que a economia tenha uma retomada e depois, no futuro, haja um equilíbrio e retorno do orçamento. Não é um grande problema”, explica o economista.
Para o economista, o grande problema de furar o teto de gastos é o contexto do governo. Ele afirma que durante a campanha presidencial, o assunto foi tratado como "cláusula pétrea'', que não podia ser alterada. A mudança de postura mostra um “desespero e descontrole” da equipe econômica.
“Isso é o que causa mais pane no mercado, o que causa mais pânico nos economistas, porque as pessoas não sabem a página 3. O mercado rapidamente responde, desinvestimentos em algumas áreas, taxa de câmbio sobe e os sinais de alta da inflação”, completa.
Élida ressalta que a discussão sobre o teto precisa ser feita em conjunto com o governo sobre as despesas repassadas aos parlamentares:
“Se é pra gente fazer um debate de ajuste fiscal equitativo, é necessário que o teto seja revisto para incluir receitas e despesas financeiras. Além disso, discutir porque houve expansão tão grande das despesas com o pessoal militar, as despesas com o fundo partidário, emendas de relator. Há muitas penumbras do debate”, alega.
Bolsa Família x Auxílio Brasil
Além dos beneficiados e do valor, o novo programa manterá alguns benefícios do Bolsa Família, como: Benefício Primeira Infância; Benefício Composição Familiar; Benefício de Superação da Extrema Pobreza; Auxílio Esporte Escolar; Bolsa de Iniciação Científica Júnior; Auxílio Criança Cidadã; Auxílio Inclusão Produtiva Rural; Auxílio Inclusão Produtiva Urbana e Benefício Compensatório de Transição.
Segundo o ministro da Cidadania, João Roma, o governo deve desembolsar R$ 60 bilhões ao ano com programa, que só tem previsão de vigência até o final de 2022.
Segundo os especialistas, substituir o Bolsa Família é uma tentativa de Bolsonaro de ter um programa social que remeta ao seu governo. “A nomenclatura do Bolsa Família está muito identificada com os governos passados, o governo quer carimbar um programa no seu nome”, destaca o economista. Eles afirmam que o ideal era melhorar o programa ao invés de criar um novo quase do zero.
Élida diz que o Bolsa Família precisava ser ampliado e melhorado há muito tempo, a fila de espera somava mais de 2 milhões de brasileiros. ““Do ponto de vista jurídico, a fila de espera era ilícita. As pessoas que cumprem os requisitos de acessibilidade têm direito público garantido”.
Além do pagamento, o programa criado em 2003, fazia um suporte social por meio do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). Com o cadastro, as famílias recebiam avaliação da caderneta de vacinação das crianças vinculadas, frequência em escolas e assistência social.
A professora da FGV ressalta que o Bolsa Família era política pública de Estado, e não de governo. Élida destaca mais dois problemas do Auxílio Brasil: o primeiro é o prazo de duração, e o segundo da nova medida ser um projeto eleitoral.
“A ideia de fazer uma substituição da Bolsa Família com o prazo de duração até o final das eleições, mostra bem o desvio de finalidade. Você maneja uma política pública que resguarda direito, mas apenas para atingir um curto prazo efetivo dos governantes de ocasião. Fica muito mais suscetível, inclusive, ao posicionamento de abuso e poder político. Isso gera um risco muito temerário de se tornar uma forma de captura de compra de votos”.
O valor de R$ 400 reais é suficiente?
Alimentos, conta de luz, gás e necessidades básicas cobrem todo orçamento dos brasileiros. Por conta da pior crise hídrica dos últimos 91 anos, a bandeira tarifária 'escassez hídrica' está sendo aplicada nas contas de luz, o que acrescenta R$ 14,20 a cada 100 kWh consumidos.
A alta da inflação dos últimos 12 meses acumula 10,78%, segundo o Índice de preços no consumidor (IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O mês de outubro registrou 1,25%.
A inflação é a alta de todos os preços da economia: alimentos, combustíveis, contas, moradia, educação, lazer e saúde. Os índices refletem o preço dos alimentos, que subiram ao longo do ano. A carne vermelha e o arroz são uns dos principais vilões do crescimento.
Segundo levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e divulgado na última sexta-feira (5), a cesta básica consome grande parte do orçamento. Em Florianópolis, por exemplo, o preço custa R$ 700,69, em seguida vem São Paulo com o custo de R$ 693,79, Porto Alegre com R$ 691,08 e Rio de Janeiro com R$ 673,85.
O Dieese também divulgou que o salário mínimo para cumprir todas as necessidades básicas dos brasileiros deveria ser R$ 5.886,50.
“O problema do valor é que estamos diante de um registro ainda da pandemia, ainda temos um quadro pandêmico, e nós temos pessoas completamente afetadas. Se a gente imaginar que o auxílio emergencial não deu conta de movimentar a economia e fazer com que as pessoas tenham acesso, R$ 400 reais seria muito menos. O valor não é suficiente”, relata o economista.
Na opinião da professora, é preciso avaliar as questões regionais, por exemplo, em uma região do Brasil pode ser suficiente, mas na maior metrópole que é São Paulo, não será satisfatório.
“Precisamos fazer o levantamento mais próximo da realidade dos beneficiados, é injusto ter uma parametrização que desconsidere as diferenças regionais. O Bolsa Família apenas permite que a gente não deixe as pessoas terem essa insegurança alimentar, que não morram de fome, mas é insuficiente”.
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