No final do mês passado, Emil Ferris se tornou a primeira quadrinista norte-americana a ser condecorada pelo governo francês como Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras. Ferris é autora da série em dois volumes “Minha Coisa Favorita É Monstro”, um colosso em tamanho e qualidade. O livro final da série saiu nos EUA – e aqui no Brasil – no ano passado, e é difícil imaginar uma lista de melhores HQs do ano em que não esteja presente.
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Nascida e criada em Chicago, Ferris é artista de longa carreira – como ilustradora, não como quadrinista. Sua estreia na nona arte aconteceu apenas em 2017, aos 55 anos, justamente com o volume de estreia de “Minha Coisa Favorita É Monstro”. A obra foi efusivamente reconhecida pela crítica: levou três Eisner Awards (melhor graphic novel inédita, melhor escritor/artista e melhor colorista), e, do outro lado do Atlântico, foi eleita a HQ do ano no Festival de Angoulême, realizado na França e mais importante do gênero na Europa.
O volume inicial traz 400 páginas maravilhosamente ilustradas, em sua maioria, por uma simples caneta bic. Somos apresentados a Karen Reyes, uma menina de 10 anos crescendo na Chicago dos anos 60. A HQ é apresentada como se fosse o diário dela, e acompanhamos seus gostos e descobertas, medos e dúvidas.
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Karen é apaixonada por arte – adora quadros, museus, filmes e quadrinhos. E ela tem um gênero favorito, presente já no título da HQ: terror, de preferência com monstros. Quando se desenha, ilustra-se sempre como sendo uma lobisomem-fêmea que se esconde sob um chapéu e um pesado casaco. Vemos, por meio de suas memórias e reflexões, que é uma adolescente sensível, vivendo sua jornada de autoconhecimento em meio ao turbilhão de um bairro pouco abastado da Chicago dos anos 60: ladrões, prostitutas, preconceitos, tensão social e um misterioso crime dentro do próprio prédio em que ela mora com a mãe e o irmão mais velhos em um apartamento-porão.
A jornada de Karen ocorre de uma maneira que a leitura das 400 páginas é sentida como se fossem apenas 40. Obra bem narrada, sensível e profunda, nos leva para perto desta adolescente e seus escapismos e medos, suas descobertas e mistérios. Há segredos ao seu redor, mesmo dentro da sua própria família. E o mundo lá fora é claramente perigoso – assistir a um filme de lobisomem ou ler um quadrinho de vampiros é muito mais confortável.
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A continuação (e volume final) de “Minha Coisa Favorita É Monstro”, também de 400 páginas, levou sete anos para ser concluída. E você deve ter percebido nas entrelinhas dos parágrafos acima o que penso a respeito: valeu a pena tanto cuidado. Fantasia e realidade não se misturam, mas uma ajuda a suportar o outro, conforme os segredos vão se desvendando e novas questões surgem - o que, afinal, ela sente por esta adolescente que acabou de conhecer? Será que ela realmente sabe quem assassinou sua vizinha, como seus pesadelos sugerem?
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Karen está no meio de um momento difícil de sua vida, cheio de dúvidas e transformações. Por sorte, ela tem quadros clássicos, que pode visitar em museus, e quadrinhos baratíssimos de terror para a ajudarem - além, claro, do amor e da compreensão de seu complexo irmão. E, por sorte, nós, leitores, temos acesso a esta narrativa cativante e profunda que é “Minha C
Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.
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