Fundação Padre Anchieta

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O seriado da Mulher-Hulk acabou há poucos dias, e ainda estou pensando nele – o que é um bom sinal, claro. Além da ótima atuação da Tatiana Maslany, e apesar dos efeitos especiais aquém do desejável, a série entregou humor, ótimas cenas e... tocou em alguns pontos importantes. Um deles já abordei na semana passada, quando escrevi sobre a banalização da violência contra a mulher apenas para criar “entretenimento”. Outro, sobre o qual escrevo hoje, é a reflexão sobre intolerância e fãs sem noção.

Não vou dar spoilers, não se preocupe. Mas cabe aqui dizer algo: o grande algoz da temporada não foi o Xemnu, o Hulk Vermelho (felizmente!), a Mulher-Hulk Vermelha (felizmente!) ou os vilões do Circo do Crime. Foi um grupo de homens sem poderes que “atuam” (se escondem) na “deep web” e, de lá, emitem suas “opiniões” sobre o mundo. Por “opiniões”, aqui, entenda misoginia, racismo, homofobia etc. São conhecidos como “trolls”.

Os criadores do seriado (parabéns a vocês!) não tiraram esses personagens do nada. Bastou observar a realidade: os “trolls” estavam lá. Embora estejam escondidos por trás de pseudônimos e fotos falsas, os fóruns da internet, e não apenas da “deep web”, estão cheios do chorume que eles chamam de “opinião” e “liberdade de expressão”. É como aquela anedota. O cara chega em um lugar e ofende, do nada, todos que estão por perto: “Seu idiota! Seu imbecil! Seu estúpido!”. Aí, todos se afastam dele. Sozinho, ele reclama: “Maldita chatice do politicamente correto... Ninguém mais está aberto ao diálogo!”.

Pegando exemplos dos mundos dos quadrinhos: internautas que criticaram editora a DC Comics pelo fato de o filho do Superman ser bissexual, de o parceiro francês do Batman ser um africano muçulmano ou por a atriz que interpreta a Mulher-Maravilha nos cinemas, a israelense Gal Gadot, não ter seios grandes. Eu vi uma entrevista em que, antes mesmo de ser questionada sobre qualquer coisa, a Gal Gadot conta pro apresentador que seus seios estão sendo constantemente criticados.

Saio dos quadrinhos para minha vida. Há dois anos, escrevi aqui mesmo, na minha coluna na TV Cultura, sobre diversidade nos quadrinhos. O artigo partia da seguinte premissa: “Por que diabos alguém seria contra diversidade nas histórias em quadrinhos? Descobri que o movimento é mais amplo do que eu pensava e abrange não só HQs, mas também filmes, animações e games. Meu primeiro passo foi tentar entender a motivação deles. Confesso que fracassei. Qual é o problema em haver um Lanterna Verde gay? Uma Pequena Sereia negra? Um Batman islâmico? Uma Mulher-Maravilha brasileira? A resposta curta é: nenhum. A resposta longa, elaborada e cheia de argumentos é: nenhum.”

Esta reflexão teve centenas e centenas de comentários nas redes sociais – a maioria, me insultando. Não li todos, claro, mas alguns amigos leram e me repassaram. Lembro de uma agressão a meus pais... Se uma pessoa discorda de uma opinião e apresenta outra, temos um diálogo. Se, em vez de outra opinião, traz insultos, temos um troll que não merece resposta. Se ofende não só o interlocutor, mas sua família, desejo apenas que nasça com cérebro na próxima encarnação. É exatamente disso que o seriado da Mulher-Hulk trata em seu último episódio. Meu questionamento de dois anos atrás apenas arranhou a superfície do problema, que continua crescendo desde então.

E ainda não consigo entender o que se passa na mente de trolls e congêneres. Quando descobriu-se que o novo “Mad Max” (ótimo filme) teria como protagonista uma mulher, houve um abaixo-assinado contra o longa-metragem. Este é um exemplo pequeno, mas há uma enormidade deles quando falamos de seriados de TV e quadrinhos, como se uma mulher não pudesse ter seu espaço sob os holofotes, não pudesse brilhar, apenas por ser mulher. “Mulher-Hulk” aborda bastante isso, assim como “Supergirl” e alguns outros seriados – infelizmente, poucos. Normalmente, essa negação ao protagonismo da mulher não vem isolada. É acompanhada de um movimento crescentemente violento e opressor. É mais do que não aceitar o outro: é querer tirar dele o direito de existir. De preferência, com violência. Misoginia. Por quê?O fato de o filho do Superman – que também é um Superman, aliás – ter um namorado levou fãs a espumarem nas redes. Uma minoria infeliz, agressiva, barulhenta e recalcada, mas ainda assim uma minoria. Já vi gente defender que apresentar personagens gays na ficção (quadrinhos, livros, filmes, seriados) é uma maneira de transformar todo mundo em gay. Este argumento não para em pé, é completamente descolado da realidade. O terraplanismo também não para em pé e é descolado da realidade, mas é inofensivo. O problema dessa teoria absurda de que ver um personagem gay “transforma” alguém em gay é que ela não é inofensiva. É usada como linha auxiliar de um movimento crescentemente violento e opressor. É mais do que não aceitar o outro: é querer tirar dele o direito de existir. De preferência, com violência. Homofobia. Por quê?

Sim, repeti algumas palavras – e sentenças inteiras – nos parágrafos acima. Peço licença para fazer isso pela última vez nas próximas frases, mas agora falando do que ocorre quando negros são protagonistas. Pesquise o que aconteceu quando foi divulgado que a atriz que vai interpretar a Pequena Sereia no cinema, a americana Halle Bailey, é negra. Ou quando saíram as primeiras fotos da atriz britânica Kirby Howell-Baptiste (negra também) escalada para viver a Morte no seriado “Sandman”. Esses comentários estúpidos fazem parte, desculpe a repetição, de um movimento crescentemente racista, violento e opressor. De novo, é mais do que não aceitar o outro: é querer tirar dele o direito de existir. De preferência, com violência. Racismo. Por quê?

Esta pequena reflexão passa por misoginia, homofobia e racismo, mas não só. Há muitos outros exemplos – parece que há uma minoria da humanidade que faz questão de ser estúpida. Mas comecei este artigo falando de violência contra a mulher relacionada ao universo dos quadrinhos (afinal, esta é uma coluna sobre HQs) e vou terminar da mesma maneira.

Há alguns anos, a Gail Simone comentou que estava gostando do seriado do “Justiceiro” (eu também gostei, Gail!), mas que o protagonista poderia ser mais simpático. Um fã não se conteve e começou o “mansplaining” – uma atitude machista que acontece quando “homem tenta explicar algo para uma mulher, assumindo que ela não entenda sobre o assunto”. Ele atacou a Gail Simone, dizendo que ela não entendia nada do personagem. Ótima roteirista que é, Gail Simone trabalhou por anos para a Marvel e... já havia escrito histórias do Justiceiro. Quem entende mais do personagem aqui? O fã, que é homem, ou a Gail Simone? Na opinião do fã, ele mesmo, claro. O rapaz aumentou a crítica à roteirista, dizendo que ela, por isso mesmo, deveria entender mais do assunto. Os fatos estavam contra ele, mas não quis nem saber.

O seriado da “Mulher-Hulk” acertou demais ao ser um espelho para a minoria barulhenta dos fãs sem noção. Temo, claro, que eles não tenham percebido as críticas. Ou pior: que tenham gostado das críticas, só não tenham entendido que eram com eles. De qualquer maneira, recomendo não só o seriado, mas duas fases da Mulher-Hulk nas HQs: a escrita por John Byrne e a roteirizada por Dan Slott. E adoraria, claro, ver aventuras da Verdona criadas pela Gail Simone...

ps - Vi, nas minhas redes sociais, pessoas aproveitando exatamente este episódio da Mulher-Hulk para atacar “nerds” e “fãs”, usando os dois termos como se fossem ofensas. Isso é obviamente errado. Eu sou nerd e fã. Achar que estes covardes agressivos que se escondem na internet representam todos os demais nerds e fãs é completamente equivocado. Seria como dizer que os torcedores que brigam em estádios representam todo e qualquer fã de futebol. Não faz o menor sentindo.